Ações como essas não devem passar despercebidas, por isso resolvi postar em meu Site a atitude do meu amigo meliponicultor de Cuiabá, José Luiz da SilvaVieira que está de parabéns pela sua atitude e que o mundo seria bem melhor se existisse pessoas com esse nível de compreensão e respeito pela natureza.
Por José Luiz da Silva Vieira,
Gadú, o ouriço atropelado
Quando programamos uma viagem de carro, principalmente durante festas de final de ano visitando parentes distantes, sempre pensamos o melhor. Cuidamos das malas com carinho, da compra de presentes, levando na bagagem um pouco daquilo que temos onde moramos. Nessa atividade nem sempre nos preparamos ou pensamos no imprevisto, como um acidente, seja envolvendo nós mesmos ou terceiros. A imprudência ou negligência de alguns pode tornar nossa viagem realmente desastrosa e inesquecível.
Viajando pelo interior do Brasil, é notável o alto número de animais silvestres mortos pelas rodovias, alguns encontrados agonizando, atropelados pela pressa dos motoristas e a não observação das poucas placas de sinalização (quando existem) indicando “diminua a velocidade, passagem de animais silvestres”.
Esquecemo-nos que esses animais, principalmente tamanduás e tatús, macacos e quatís, além de siriemas e periquitos, estão no seu habitat – o bicho homem quem é o intruso nessas regiões cortadas por estradas e rodovias.
Em minha recente viagem, iniciada bem cedo, por volta de 5h30min da quinta-feira, 29 de dezembro de 2011 – durou umas 18h percorrendo cerca de 1.200 km entre Cuiabá – capital do Mato Grosso, até Ituverava, no interior de São Paulo, tive mais uma experiência inesquecível envolvendo o resgate de um ouriço atropelado.
Num trecho da rodovia federal BR-364, altura da serra de São Vicente, distante uns 60 km de Cuiabá, próximo da saída de uma curva no meu sentido de direção, vi no acostamento contrário um bicho parado, que no momento não identifiquei. Na possibilidade de ser um animal silvestre atropelado, logo à frente estacionei meu carro no acostamento asfáltico, liguei a luzes intermitentes, local de intenso tráfego de carros e caminhões, e fui até ele.
Uma cena triste. Constatei tratar-se de um ouriço adulto (Coendou prehensilis), também conhecido como
porco-espinho ou luis caixeiro. O pobre animal estava sem reação para locomover-se, com um grande rasgo no rabo, deixando à vista a musculatura que envolve as vértebras, além de uma fratura exposta na ponta.
De sua boca escorria uma baba sanguinolenta. No lado direito de sua cara, uma hiperemia afetando inclusive a região do olho além de um corte no couro um pouco acima, na cabeça. Parte de seus pelos modificados em espinhos, na região dorsal estava arrancada.
As grandes vibrissas do lado direito também tinham sido “raladas” no acidente, além de um corte na narina direita. Sem contar que sua pata direita também estava com um ferimento superficial leve.
Nunca tive contato com um animal assim, e com os tantos “espinhos” que cobrem seu corpo fiquei olhando-o e pensando no que fazer.
Sempre que um veículo em alta velocidade passava, jogava um lufada de vento e o pobre animal encolhia-se, sei lá se por medo ou dor do ar passando em suas feridas expostas.
Corri do outro lado, pegando um pedaço de galho seco que encontrei, para, no mínimo, arrastá-lo para dentro do capim e mata junto do acostamento, assim evitaria que fosse esmagado por outros veículos, tal a proximidade que estava da pista.
O medo dos espinhos e sem saber onde manipular o animal, levou-me a pegar esse pedaço de pau para empurrá-lo para dentro do mato.
Mas observando os ferimentos expostos, lembrei-me que acabaria tendo morte lenta e dolorida, com ataque de moscas varejeiras, sem contar eventual chuva que tem caido na região.
Entre deixá-lo abandonado a própria sorte, tomei uma decisão rápida e sem pensar muito se seria ferido por seus espinhos, peguei na cauda onde não havia ferimento e ergui-o para levar para o carro.
Nesse momento, apesar de todos os ferimentos que apresentava, notei que o seu cérebro estava intacto, já que ele esboçou reação de defesa, como que querendo caminhar com as patinhas no ar… para mim um bom sinal.
Começou minha angústia para o socorro.
Voltar para Cuiabá, local mais próximo para os primeiros socorros não estava nos meus planos, pois isto atrasaria consideravelmente minha viagem e horário de chegada em Ituverava. Segui em frente.
Ainda assim, no caminho tentei algumas soluções de encaminhar o ouriço ferido para o hospital veterinário da UFMT em Cuiabá e não consegui.
Dificuldades existem, e num momento de parada na estrada para ver se ele continuava vivo (e estava!), num momento de reflexão fiquei olhando a longa estrada que me levava a um destino, e foi como se visualisasse uma passagem entre duas colunas (os acostamentos laterais) que me permitiam a segurança do prosseguir viagem com o bichinho ferido acomodado no porta-malas.
Emocionei-me pensando que em momento assim, filhos de viúvas também estariam passando por alguma situação. Ergui minha mão à testa encarando aquela rodovia que parecia interminável e senti que as forças do bem que emanam do Universo estariam conosco.
Na passagem por Alto Araguaia, ainda no Mato Grosso, já divisa com Goiás, parei numa farmácia e comprei soro fisiologico e rifocina. Banhei os ferimentos com o soro e em seguida borrifei rifocina. O animal tinha ajeitado-se sobre a mala de viagem e assim ficou durante todo o percurso, às vezes mudava a posição.
Cheguei em Ituverava bem tarde, por volta de 23h. Pelo adiantado da hora não haveria como buscar socorro.
Bem cedo, na sexta-feira, 30 de dezembro de 2011, apesar dos ferimentos o ouriço continuava vivo, pessoas indicaram-me uma clínica veterinária, chamada “Arca de Noé”. A moça que limpava o local logo chamou uma das proprietárias, médica veterinária que na realidade estava em sua folga e reside na casa ao lado, veio atender-me com a netinha no colo.
Essa pessoa, profissional médica veterinária competente e maravilhosa como ser humano chama-se Marly Cristina Wanderley. Uma das professoras do curso de Veterinária da FAFRAN em Ituverava – SP.
Sem titubear disse que o animal seria atendido sim, e que a medica veterinária do plantão do dia, Juliana Maria Avanci Agostinho, iria atender o animal.
Como ela chegaria às 09 horas, foi o tempo que tive para correr no comércio e comprar uma gaiola para colocar o ouriço, pois não poderia ficar dentro do porta-malas do carro ou solto depois.
Quando voltei na clinica, já havia toda uma equipe de profissionais à postos para atender, não só os outros animais domésticos que chegavam (a clínica Arca de Noé é bem conceituada na cidade), mas principalmente o ouriço atropelado.
Diz as técnicas de tratamento desse animal, que para facilitar procedimentos cirúrgicos conforme a região afetada e administrar-se medicamentos injetáveis, como anestesia, por exemplo, deve-se induzí-lo a entrar num tubo de PVC.
Como é extremamente raro o atendimento de animais silvestres em clínicas veterinárias, mais adaptadas ao atendimento de cães, gatos e outros animais domésticos, não tinham o tubo de PVC, que providenciei, indo numa casa de material de construção.
Recomenda-se tubos de 100 mm. Pelo tamanho avantajado do ouriço que socorri, comprei um pedaço do tubo de 150 mm.
Com a ajuda dos estagiários do curso de Veterinária da Fafran – Marlon Martins Ferreira, Juliana Pistore Ragazzi, Jessika Duque Rodrigues e Camila Maria Gorricho, acabamos conseguindo que o animal, segurando um pedaço de pau, entrasse dentro do tubo.
Isso facilitou a sua pesagem, para calcular a dose de anestésico que lhe foi aplicada, para a cirurgia que se seguiu, procedida pela médica veterinária Juliana, com auxilio dos estagiários, principalmente na assepsia dos ferimentos e limpeza de pelos (seria tricotomia?) para facilitar a sutura. Aplicaram-lhe soro para reidratação.
A Dra. Marly logo apareceu para ajudar no serviço cirúrgico e o resultado foi um bom trabalho da equipe!
Ao final, perguntei-lhes o valor das despesas médicas, de medicamentos etc. Não cobraram nada!
Foi uma cortesia da Clinica Veterinária Arca de Noé. Mas fiz questão de dar-lhes uma gratificação pelo menos para cobrir custos com material e medicamentos usados durante os procedimentos cirúrgicos.
Num momento assim nos emocionamos porque constatamos que ainda existem pessoas de bem que fazem a diferença!
Presto aqui meus sinceros agradecimentos e homenagens a todos os profissionais de veterinária (incluindo os estagiários) da Clínica Arca de Noé, de propriedade da sra. Marisa Izilda Pires, em sociedade com o médico veterinário Cleber Jacob S. de Paula e Marly, pelo carinho sincero e envolvimento profissional de excelência, que demonstraram quando atenderam o pobre animal silvestre que lhes apresentei de supresa pedindo socorro.
Muito obrigado mesmo e um beijo fraterno no coração de cada um de vocês!
Que o Grande Arquiteto do Universo triplique o seu sucesso e que continuem nesse carinho e despreendimento no exercício vocacional maravilhoso da medicina veterinária!
O depois do atendimento
Durante a avaliação geral feita pela equipe da clínica, constatou-se que era um ouriço macho, de quem retiraram três carrapatos. Foi liberado após o tratamento cirúrgico que envolveu praticamente toda a manhã da sexta-feira.
Passaram-me os cuidados que deveria praticar nos ferimentos, envolvendo limpeza inicial com soro fisiologico, depois borrifando nas regiões laterais aos ferimentos um produto larvicida e repelente prevenindo eventual miíase, e no ferimento suturado em si, rifocina.
Como a especie possui por si mesma um mecanismo metabólico antibiótico de defesa, evitou-se administrar medicamento antibiótico veterinário ou de linha humana.
Foi-lhe administrado a cada 24 horas e durante 3 dias, apenas um comprimido de medicamento veterinário anti-inflamatório com princípio ativo de Meloxicam 0,5 mg.
Nas região direita bastante afetada, altura do olho, tem sido borrifado Terracam com vitamina A, spray – esse medicamento objetiva tratar da infecção ocular em razão do ferimento.
Como naturalmente damos um nome a um animal de estimação, decidi “batizar” o ouriço com um nome pouco comum, “GADÚ”.
Gadú voltou da anestesia por volta de 23h do dia 30/12/2011, na noite do dia em que foi submetido ao atendimento médico veterinário pela manhã.
Apresentou boas reações posteriores, urinando muito; fezes consistentes normais, no formato ovalado típico da espécie.
Na manhã do dia 31/12/2011, usando de uma seringa grande, de 20 ml, dei-lhe água de coco com 1 ml de Potenay Gold B12 diluido.
Percebi que aceitou bem e além da sede, demonstrava fome. Sua boa recuperação ficou comprovada nisso, além do que já ficava sentado, erguido, posição também comum na espécie, agitando as vibrissas como que procurando por mais alimento.
Tratando-se de animal roedor, aparentado das pacas, preás, portanto com alimentação voltada a grãos e cereais diversos, preconiza a literatura especializada que seja alimentado com ração daquelas vendidas em pet-shops para animais roedores como hamsters e congêneres, cheguei a colocar em sua diminuta boca (dotada de dentões parecidos com aqueles de castor) praticamente escondida na parte inferior um grão recém colhido de girassol em casca.
Ele até iniciou movimentos horizontais do maxilar para mastigar, mas talvez, devido ao traumatismo e dor em razão dos ferimentos na cara, desistiu.
Fiz um mingau de fubá mole na base de água e fubá fino (mimoso) de milho, esperei esfriar.
Dai enchi um copo plástico desses de requeijão, com o mingau de fubá, mais uma colher das de chá de açúcar cristal, uma pitada de sal e uma colher das de sopa de leite em pó integral, mais 1 ml de Potenay Gold B12 (complexo vitamínico liquido de farmácia veterinária). Descobri nessa fórmula uma ótima aceitação pelo animal.
Para administrar o alimento, coloco o bico duro da seringa no canto lateral de sua boca e vou pressionando vagarosamente o embolo. Ele é paciencioso, e apesar de pastosa bem líquida, mastiga enquanto engole.
Mantenho dentro da gaiola onde ele fica, uma cabeça de girassol cheia de sementes que colhi pelas rodovias.
Isso é necessário para que ele mesmo descubra o momento de alimentar-se por si só.
Ele tem também, à disposição – cachos de sorgo e milheto.
Entendo que não podemos forçar um animal convalescente a comer alguma coisa, até porque não estamos no seu corpo para sentir efetivamente suas dores.
O fornecimento de alimentação pastosa (mingau de fubá enriquecido com vitaminas) será dado enquanto houver aceitação e ele não estiver roendo grãos de cereais por conta própria.
Gadú, esse ouriço de sorte, no quarto dia de recuperação, demonstra ser guloso (como come!) – teve na sua dieta alimentar, ainda na base de mingau de fubá conforme descrito acima, o acréscimo do complexo vitamínico em pó, Aminomix pet, na base de uma colher rasa das de chá, uma vez por dia.
Tem sido alimentado com mingau três vezes ao dia (de manhã, ao meio-dia e no anoitecer).
Para sua reidratação, no lugar da água pura, tenho administrado-lhe água de coco e eventualmente suco de melancia, exatamente para sua melhor e mais rápida recuperação, pois sabemos que a água de coco supre o soro fisiologico e o suco de melancia atua como fonte de energia além da própria água em si.
O acréscimo de leite em pó (uma colher das de sopa cheia, para cada copo de mingau), proporciona uma maior palatabilidade no alimento.
Apesar do meu conhecimento leigo, pois não sou formado em biologia ou veterinária, esse leite em pó destina-se a fornecer ao bicho uma maior fonte de cálcio.
Entendo que diferente de outras espécies, como ele possui pelos modificados em milhares de espinhos, na formação dessa queratina, haveria uma necessidade maior de cálcio.
Quebrando uma crença ou mito
Por desconhecimento da cultura popular, existe uma crença envolvendo o ouriço, de que este “lança espinhos” quando importunado por outros animais ou pelo bicho homem.
Trata-se de um mito que deve ser colocado por terra.
Por uma razão óbvia e simples, se assim fosse, ele teria que ter na mesma proporção milhares de minúsculas zarabatanas, além de um complexo emaranhado de tubos sob o couro, no fornecimento de ar em foles para assoprar tais espinhos nos seus agressores. E isso não existe nem nunca existiu!
Só rindo mesmo da ignorância popular que transforma um bicho num monstro.
O que acontece é que, no momento em que ele sente-se acuado ou agredido, eriça os pelos modificados em espinhos, que soltam-se facilmente uma vez pressionados e, pelo toque corporal do agressor, invadem tecidos moles espetando a pele/couro ou boca (principalmente cachorros), já que são pontiagudos e tão finos na ponta como uma agulha de costura.
Dai o registro de acidentes domésticos com cachorros nos entornos de áreas urbanas com matas, e principalmente em regiões rurais.
Essa estória, crença ou mito de que ele lança espinhos, talves tenha nascido em tempos idos, quando as pessoas, sem muito conhecimento, deparavam com o pobre animal sendo acuado por cachorros, e no medo natural da própria pessoa, enxergavam por si só e pavor, o coitado do ouriço “lançando” espinhos. Repito, isso não acontece, isso não ocorre, isso não existe! É lenda, fábula!
E falo com conhecimento de causa porque tive e estou tendo a oportunidade provisória de estar convivendo com um animal assim.
Tenho comprovado que o ouriço é um animal extremamente dócil, lento, calmo, não é agressivo, só caminha para a frente, não consegue andar “de ré”, permite seja acariciado pela pessoa à qual estiver acostumado, principalmente no sentido a favor dos “espinhos” na região dorsal, desde o focinho até o rabo.
Tem como característica anatômica, a presença de apenas quatro dedos, seja nas patas dianteiras ou traseiras, dotadas de unhas fortes, pontiagudas e compridas que auxiliam-no escalar árvores, assim como segurar objetos.
Nos testes de contato e reação, percebi que ele tem grande sensibilidade nas partes laterais da barriga, e quando tocado nessa região, mesmo por pessoa a quem estiver acostumado, ele eriça os pelos modificados.
Quando sente confiança, chega a querer subir no braço da pessoa. Isso aconteceu comigo, mas não permiti porque ainda não conheço a totalidade de suas reações como animal silvestre, nem saberia retirá-lo de meu braço depois – afora a possibilidade de ser espetado.
Em razão daqueles aspectos positivos do comportamento do ouriço, segundo literatura especializada, ele até poderia ser criado como bicho de estimação.
Não recomendo criação de animal silvestre em cativeiro, lugar de bicho do mato é no mato, em reservas legais ou parques ecológicos.
Conforme for a recuperação final de Gadú, proporcionarei sua volta às matas, mas em local distante de rodovias e canaviais ou lavouras de soja (a primeira porque poderá ser atropelado novamente, na segunda porque durante as queimadas dos canaviais poderá ser carbonizado e na terceira, porque será intoxicado com o elevado índice de defensivos agrícolas que aplicam nessas lavouras)
Talvez ele fique cego do olho direito. Enfim, dependendo de sequelas que tiver, solicitarei a Defensoria do Meio Ambiente, a sua guarda para cuidados enquanto viver.
Publicarei futuramente novas fotos em novo artigo de sua plena recuperação, quando estiver comendo grão de cereais por si só e todos os ferimentos cicatrizados.
Reitero meu emocionado e sincero agradecimento ao carinho e atenção diferenciada demonstrado no atendimento gratuito, feito pela equipe de profissionais da CLINICA VETERINÁRIA ARCA DE NOÉ, de Ituverava, Estado de São Paulo, localizada na Rua Uatapí, 319 – bairro Jardim Marajoara, CEP: 14500-000. Email de contato: clinicavetarcadenoe@hotmail.com (telefone: DDD-016 – 3839-0170)
Este artigo é dedicado aos amantes e defensores do Meio Ambiente, servindo como fonte de informações aos profissionais de Biologia e Veterinária envolvendo cuidados com animais silvestres da espécie ouriço.
Fotos e texto:José Luiz da Silva Vieira
Fonte bibliográfica: Tratado de Animais Selvagens – Medicina Veterinária, Cubas, Silva e Catão-Dias, 2006, Editora Roca.